Discussão um pouco antiga para uma atual e persistente reflexão

Discussão um pouco antiga para uma atual e persistente reflexão

 

“Ser professora implica assumir uma profissão enquanto não se é tia por profissão”. (Freire, 1997)

A priori, devo registrar aqui o que me impeliu a escrever sobre tal problemática, visto que muitos são os motivos que levam uma pessoa a dissertar. Enquanto uns escrevem com intuito de informar, externar sua felicidade ou por nostalgia, outros escrevem no intento de exteriorizar sua indignação ou, talvez, suas reflexões e dentro destas tentativas de externar algo, me enquadro no ultimo exemplo. Escrevo porque refleti, não apenas um dia ou dois, mas durante um punhado de tempo e ainda me detenho imersa nesta conjectura que envolve o questionamento: professora ou tia?

15 de outubro de 2011, em uma de minhas visitas semanais a uma escola municipal no centro de Salvador, onde me encontrava a exercer a atividade de estágio em uma turma de 3º ano (antiga segunda série), uma das crianças me agregou à sua família com um termo ainda utilizado cotidianamente no seio do professorado, ela chamou-me de “tia”.

“Tia” é um termo que faz alusão ao integrante de uma família, sendo esta a irmã do progenitor (a) de um determinado indivíduo. Um ser que, muitas vezes, funciona como uma segunda mãe. E foi/é basilarmente com este pensar que a sociedade via/vê o ato da professora de educação básica. Neste sentido, segundo Arce (2001):

[…] A “tia” é vista como uma substituta da mãe, pessoa adequada para o trabalho feminino de cuidar de crianças pequenas, de preferência jovem, solteira e possuidora da moral inabalável pregado por Montessori. Chamá-la de mãe não seria possível, mas associá-la a outro membro da família atenuaria o choque da separação da mãe, aliviando, ao mesmo tempo, a culpa sentida pela mãe de ter que abandonar seu filho nas mãos de uma pessoa estranha. Ninguém melhor do que a “tia”, que não está relacionada à figura terrível da professora, pois a tia é boazinha, sendo conhecida da criança e simbolizada na família como aquela figura secundária, geralmente celibatária, que passa sua vida a exercer, por meio dos cuidados com os sobrinhos, a maternidade que não pode ter. (ARCE, 2001, p.174)

Deste modo, a professora das séries iniciais era/é vista como quem ofertava carinho, amor, compaixão, paciência, a que oferecia/oferece também o colo de mãe. Posto isto, vale ressaltar de modo a problematizar que o substantivo “tia”, como todas as palavras que compõem nossa língua, é carregado de conceito e, às vezes, estigmas. Para tanto é fundamental principiar por uma interrogação que se faz presente: em qual outro ramo de atividade ao profissional é delegado um termo usualmente imputado a um membro de uma família?

Advogados, médicos, enfermeiros não são chamados de “tio” ou “tia”. Não que este termo seja uma ofensa ou redução da importância deste, mas esta palavra não deve ser utilizada em referencia a um profissional. É certo que professores, muito provavelmente, sejam tios e tias, mas em outros contextos. Neste sentido, Paulo Freire afirma que:

O que me parece necessário na tentativa de compreensão crítica do enunciado professora, sim; tia, não, se não é opor a professora à tia não é também identificá-las ou reduzir a professora à condição de tia. A professora pode ter sobrinhos e por isso é tia da mesma forma que qualquer tia pode ensinar, pode ser professora, por isso, trabalhar com alunos. Isto não significa, porém, que a tarefa de ensinar transforme a professora em tia de seus alunos da mesma forma como uma tia qualquer não se converte em professora de seus sobrinhos só por ser tia deles. Ensinar é profissão que envolve certa tarefa, certa militância, certa especificidade no seu cumprimento enquanto ser tia é viver uma relação de parentesco. Ser professora implica assumir uma profissão enquanto não se é tia por profissão. Se pode ser tio ou tia geograficamente ou afetivamente distante dos sobrinhos, mas não se pode ser autenticamente professora, mesmo num trabalho a longa distância, “longe” dos alunos. (FREIRE, 199, p. 9)

É certo que da professora de séries iniciais se espere atitudes de modo a estreitar a relação com as crianças. Assim, ela tem que ter um olhar cuidadoso, amoroso, carinhoso… Mas não pode perder de vista seu compromisso com a educação. Sugiro, então, que haja um meio termo, tendo em mente que é humanamente impossível para o professor não se envolver emocionalmente com a tarefa a qual foi designado. O equilíbrio seria a solução, pois não haveria detrimento de nenhuma das visões apontadas acima.

 

 

Referências:

ARCE, Alessandra. Documentação oficial e o Mito da educadora nata na educação infantil. Cadernos de pesquisas, n.113, p.167 – 184, julho/2001. Disponível em: <<http://www.scielo.br/pdf/cp/n113/a09n113.pdf>&gt;. Acesso em: 28 mar. 2011.
FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Editora Olho d´Água, 1997. Disponível em: <<http://forumeja.org.br/files/Professorasimtianao.pdf>&gt;. Acesso em: 28 mar. 2011.

 

Crédito da imagemhttp://facaparte.org.br/

 

*Data original da publicação: 04 de maio de 2012

Ano: 
2012